quarta-feira, 3 de julho de 2013

Descuido

"Ele apresentava um falso cuidado consigo mesmo, na camisa asseada, em seus cabelos cuidadosamente penteados para o lado. Gostava de vestir-se bem, e apreciava bons perfumes, de preferência aqueles capazes de esconder o ar cansado que há tempos lhe envolvia a alma. Era de seu agrado toda a sorte de banalidades que contribuíssem para construir, aos olhos de quem vê, uma imagem de equilíbrio e certeza, contrária às tensões e contradições em seu íntimo, opressoras, impiedosas, dia após dia.

Dentre os milhões de outros seres falhos sobre a superfície da terra, este especificamente, não mais importante ou belo em suas desgraças particulares, deu-se ao luxo ou ao descaso. Numa segunda-feira cinza, cometeu o único pecado imperdoável a qualquer homem, esqueceu seus óculos escuros  ao sair de casa, deixando visível a quem quisesse ver, através do par de olhos pesados, tudo o que lhe afligia.

Caminhando pela calçada, no mesmo e infinito trajeto realizado todos os dias, passando por valetas sujas da podridão que a vida deixa para trás, sentiu-se notado por olhares ariscos, alheios ao seu sofrimento. Sentiu-se levemente incomodado, sem se dar conta de que oque toda aquela gente temia era olhá-lo nos olhos, e ver a si próprios refletidos na mesma dor."

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