"Ele apresentava um falso cuidado consigo mesmo, na camisa
asseada, em seus cabelos cuidadosamente penteados para o lado. Gostava de
vestir-se bem, e apreciava bons perfumes, de preferência aqueles capazes de
esconder o ar cansado que há tempos lhe envolvia a alma. Era de seu agrado toda
a sorte de banalidades que contribuíssem para construir, aos olhos de quem vê,
uma imagem de equilíbrio e certeza, contrária às tensões e contradições em seu
íntimo, opressoras, impiedosas, dia após dia.
Dentre os milhões de outros seres falhos sobre a superfície
da terra, este especificamente, não mais importante ou belo em suas desgraças
particulares, deu-se ao luxo ou ao descaso. Numa segunda-feira cinza, cometeu
o único pecado imperdoável a qualquer homem, esqueceu seus óculos escuros ao sair de casa, deixando visível a quem
quisesse ver, através do par de olhos pesados, tudo o que lhe afligia.
Caminhando pela calçada, no mesmo e infinito trajeto
realizado todos os dias, passando por valetas sujas da podridão que a vida
deixa para trás, sentiu-se notado por olhares ariscos, alheios ao
seu sofrimento. Sentiu-se levemente incomodado, sem se dar conta
de que oque toda aquela gente temia era olhá-lo nos olhos, e ver a si próprios
refletidos na mesma dor."